quinta-feira, 20 de julho de 2017

Não é só por um (grande) pedaço de gelo!


Semana passada, um iceberg, estimado em um trilhão de toneladas, se formou ao se soltar de uma plataforma de gelo na Antártica.



Uma massa de gelo desse tamanho se desprender da Antártica, ainda que seja bastante assustador, é algo natural. O ciclo de gelo e degelo ártico e antártico acaba propiciando ações nesse sentido, então não é raro – na verdade, é bastante comum – a formação de icebergs menores do que esse.

Mas a história aqui não é só pelo iceberg.

Um reconhecido negacionista climático, reiterando sua afronta a conceitos científicos básicos, reforçou em rede social: “Prioridades: Bloco de gelo da Antártida ou o rio de coco e xixi que cruza São Paulo?”. Bem, tirando o fato da falácia óbvia nessa afirmação – da mesma classe do famoso “como você se preocupa com isso quando tem gente morrendo de fome na África?” –, o doutor professor analisa pontualmente o fato, ignorando o contexto. A questão não é esse iceberg, apesar de que seu tamanho tenha atraído atenção midiática; a questão é a tendência. 


Falamos aqui de mudança do clima. Falamos sobre a temperatura média global e sua tendência para as próximas dezenas de anos. Se, no momento em que escrevo este texto, estamos experimentando no Brasil um frio atípico, mesmo para o inverno, isto é uma prova tão precisa que “o aquecimento global é uma farsa” como seria afirmar que a fome do mundo acabou porque estou no meio de um supermercado cercado de comida. Não se analisa um evento pontual, uma chuva fora da média, um furacão ou uma onda de calor, mas a soma de todas essas coisas e, principalmente, a tendência de um clima cada vez mais severo e de mudanças abruptas.

O cientista climático sério não analisará os dados de sua pesquisa para afirmar que amanhã estará mais ou menos quente ante a ação humana dos últimos dois séculos. E não o fará por dois motivos principais: primeiro, porque, como dito, a climatologia mede e estipula tendências do clima, não a previsão do tempo de amanhã; e segundo – e se é para você guardar algo deste texto, concentre-se nisso – porque a ciência não funciona com verdades absolutas.

Infográfico: EstadãoFonte: IPCC
  
As conclusões dos estudos vão sempre falar de tendência e probabilidade. Não de verdades absolutas. Vão falar que há uma chance quase inequívoca de um aumento superior a 2°C na temperatura média global até o final do século decorrente da ação humana. E falarão isso com mais e mais certeza quanto mais dados foram disponíveis; ou mudarão prognósticos baseados em novos dados, novas leituras ou refutações sérias.

Para entender o funcionamento do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas). Infográfico: Folha de São Paulo

O inglês tem uma expressão muito útil para falar da ciência “séria” – sound. Quando algo é metodologicamente correto, desamarrado de ideologias e dogmas pré-concebidos e com afirmações checadas posteriormente por pares, aquilo é sound science. E, nesse momento, é disso que precisamos. Que essa ciência sound se aprofunde cada vez mais, a ponto de superar o “ruído” que vem de céticos que se utilizam de falácias ou meias-verdades para que seu próprio público bata palmas mais ruidosas. Na era do fake news e da pós-verdade, um dos caminhos de superação é justamente uma ciência séria. 

Fonte: Pinterest

Porque, acreditem – e me perdoem pelo trocadilho – mas o desprendimento do iceberg é somente o topo do iceberg.


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